O filme é, de fato, uma porrada. São duas horas sem um instante de refresco em que você, mesmo sabendo como a história vai terminar, fica preso à cadeira sem piscar o olho.
No fim da projeção para um pequeno grupo de amigos do diretor na noite de terça-feira numa sala do Shopping Pompéia, ficamos um bom tempo em silêncio, meio que paralisados diante do que acabamos de ver.
Todo mundo deve se lembrar do dramático episódio encenado no ônibus da linha 174, em junho de 2000, no centro do Rio de Janeiro, que foi transmitido ao vivo durante horas pelas redes de televisão e terminou com a morte de uma refém e do seqüestrador Sandro do Nascimento, um órfão de 22 anos.
Mas ninguém sabia como começou esta tragédia de uma família brasileira até chegar ao desfecho. Contar esta história com começo, meio e fim - e que só poderia mesmo ter este fim - foi o grande desafio de Bruno Barreto e do roteirista Bráulio Mantovani.
Embora se trate de uma ficção baseada em fatos reais (ver entrevistas com os dois abaixo), lembra mais uma reportagem, como estas que assistimos nos programas policiais de fim de tarde na televisão sobre a mãe que perde um filho e o filho que perde a mãe.
Ninguém ali parece estar representando. Em seu 19º longa metragem, pela primeira vez Bruno trabalhou com não-atores ou atores de pouca experiência encontrados em grupos teatrais de comunidades carentes do Rio - o que pode explicar o extremo realismo das cenas.
Entre eles, Michel Gomes, em primorosa atuação no papel do protagonista Sandro. Diretor e roteirista não opinam no filme, não querem passar nenhuma mensagem, nem fazer análise sociológica - e nos entregam um dos melhores filmes nacionais dos últimos anos.
“Última Parada - 174” não é um filme de bandidos e mocinhos, apenas mais um filme sobre a violência carioca. Conta, isto sim, com muita crueza e sem adjetivos, como é o cotidiano de famílias pobres e desestruturadas, sempre nos limites entre a vida e a morte, entrando na intimidade dos morros cariocas que a gente não conhece.
Fiquei sem saber o que é causa e o que é efeito da violência em que vivem. Só sei que o seqüestro no ônibus, que chocou milhões de telespectadores em todo o país, foi para Sandro apenas o desfecho natural de uma trajetória sem saída.
Melhor do que eu ficar aqui dando uma de crítico de cinema, escrevendo sobre o que não entendo, é passar a palavra logo aos dois jovens que colocaram esta obra em pé após quase quatro anos de trabalho.
Conversei com Bruno e Bráulio - olha aí, bons nomes para uma dupla sertaneja... - depois de me recuperar do impacto do filme para tentar entender melhor o que havia acabado de ver.
Não posso me queixar da vida. Os dois são meus amigos e me deram belos depoimentos. Uma das felicidades de trabalhar por muito tempo nesta profissão de repórter é ficar conhecendo muita gente boa em todas as áreas, como estes dois premiados talentos do cinema brasileiro, e acabar entrevistando amigos.
A seguir, três perguntas para Bruno Barreto e Bráulio Mantovani:
“Depois de rodar o primeiro take, meus olhos estavam cheios de lágrimas”
IG: Bruno, por que você resolveu fazer este filme? Não tinha nenhuma história mais bonita e feliz pra contar?
Bruno Barreto: Quando vi o documentário “Ônibus 174”, do José Padilha, fiquei muito impactado e com muitas perguntas que não encontravam respostas. A principal era: por que a Marisa resolveu adotar logo o Sandro, menino de rua que tinha sido preso várias vezes? Muitas vezes só a ficção consegue responder perguntas que a realidade apresenta. Não sei explicar porque fiquei compelido a contar esta história. Em geral, só consigo responder a isto alguns meses depois do filme ficar pronto.
IG: Em que “Última Parada - 174” difere de outros filmes recentes que trataram da violência carioca?
Bruno: Eu acho que essa história é diferente porque, pela primeira vez desde “Pixote”, coloca esses personagens, excluídos socialmente, como sujeito e não objeto. Dessa forma, mesmo que o espectador seja de uma classe social bem distante daquela dos personagens do filme, ele vai se envolver, porque os sentimentos humanos são universais.
IG: Teve alguma cena em que você se emocionou, ficou com o coração apertado durante as filmagens?
Bruno: A cena na qual o Sandro “adota” a Marisa como mãe. Digo que ele a adota porque sabe que ela não é a mãe dele, mas ela acha que está reencontrando o filho verdadeiro depois de 17 anos. Será que o Sandro é um mau caráter porque está fingindo que é filho da Marisa, embora ele conheça o filho verdadeiro? Eu acho que não, porque o Sandro precisa muito mais de uma mãe do que o filho real. Esta é a cena mais emblemática do filme e, quando eu gritei “corta!”, depois de rodar o primeiro take, meus olhos estavam cheios de lágrimas.
“Só me sinto realizado quando o espectador sai perturbado”
IG: Bráulio, você que já foi repórter obrigado a retratar a realidade, conte um pouco como foi o processo de criação do roteiro, como a história de ficção foi sendo construída, as dificuldades que enfrentou...
Bráulio Mantovani: Para mim, a maior dificuldade foi a mesma que tenho sempre que trabalho a partir de histórias reais que aconteceram recentemente: criar a coragem necessária para alterar a história real e transformá-la em ficção. Esse processo é sempre o mais difícil para mim. Mas é o único que funciona. Não consigo ser fiel à realidade. Eu só consigo escrever inventando. Mesmo nas adaptações - como em “Cidade de Deus” - o que eu faço é me apropriar das histórias para contá-las do meu jeito. No caso das adaptações ou reescrita de roteiros de outros autores eu mudo o que quero, mas não sem antes sofrer muito, sentir-me culpado e ter a sensação de que estou desrespeitando a memória das pessoas. É traumático. Mas ficção é ficção. E a responsabilidade maior do artista ou escritor é com a forma. No caso específico de quem escreve para cinema, a responsabilidade é com a eficiência da narrativa. Transpor a vida para a ficção é algo que não sei fazer. Acho que ninguém sabe. Simplesmente, não funciona.
IG: E o que funciona para o filme dar certo, mesmo sendo uma porrada, um soco no estômago do freguês?
Bráulio: O que funciona é recriar na ficção o efeito que a história - seja real, seja adaptada de literatura - produz em mim. E para recriar esse efeito eu invento e reinvento fatos e personagens. Nenhum personagem em “Última Parada – 174” é fiel á realidade. Tanto que apenas o Sandro tem o mesmo nome do personagem real que usei como inspiração. Todos os outros nomes são inventados. Eu gosto de pensar que tudo nos meus roteiros é invenção minha. Inclusive o que aconteceu de fato, na realidade. No meu roteiro, o massacre da Candelária, o seqüestro do ônibus 174, a morte da refém e de Sandro são de minha autoria. Por isso, eu espero, esses episódios têm no filme um efeito muito parecido ao que produziram em mim quando aconteceram na realidade. Um efeito devastador, perturbador. Quando vou ao cinema, gosto de sair perturbado. Por isso, quando escrevo para cinema, só me sinto realizado quando o espectador sai perturbado.
IG: No meu caso, pelo menos, você pode se sentir realizado...E, depois de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, outros socos no estômago, quando é que você vai fazer o roteiro de uma história de amor com final feliz?
Bráulio: Tenho planos de escrever umas comédias malucas...Aguarde no próximo ano!
por Ricardo Kotscho
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