segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ultima Parada 174

O filme é, de fato, uma porrada. São duas horas sem um instante de refresco em que você, mesmo sabendo como a história vai terminar, fica preso à cadeira sem piscar o olho.

No fim da projeção para um pequeno grupo de amigos do diretor na noite de terça-feira numa sala do Shopping Pompéia, ficamos um bom tempo em silêncio, meio que paralisados diante do que acabamos de ver.

Todo mundo deve se lembrar do dramático episódio encenado no ônibus da linha 174, em junho de 2000, no centro do Rio de Janeiro, que foi transmitido ao vivo durante horas pelas redes de televisão e terminou com a morte de uma refém e do seqüestrador Sandro do Nascimento, um órfão de 22 anos.

Mas ninguém sabia como começou esta tragédia de uma família brasileira até chegar ao desfecho. Contar esta história com começo, meio e fim - e que só poderia mesmo ter este fim - foi o grande desafio de Bruno Barreto e do roteirista Bráulio Mantovani.

Embora se trate de uma ficção baseada em fatos reais (ver entrevistas com os dois abaixo), lembra mais uma reportagem, como estas que assistimos nos programas policiais de fim de tarde na televisão sobre a mãe que perde um filho e o filho que perde a mãe.

Ninguém ali parece estar representando. Em seu 19º longa metragem, pela primeira vez Bruno trabalhou com não-atores ou atores de pouca experiência encontrados em grupos teatrais de comunidades carentes do Rio - o que pode explicar o extremo realismo das cenas.

Entre eles, Michel Gomes, em primorosa atuação no papel do protagonista Sandro. Diretor e roteirista não opinam no filme, não querem passar nenhuma mensagem, nem fazer análise sociológica - e nos entregam um dos melhores filmes nacionais dos últimos anos.

“Última Parada - 174” não é um filme de bandidos e mocinhos, apenas mais um filme sobre a violência carioca. Conta, isto sim, com muita crueza e sem adjetivos, como é o cotidiano de famílias pobres e desestruturadas, sempre nos limites entre a vida e a morte, entrando na intimidade dos morros cariocas que a gente não conhece.

Fiquei sem saber o que é causa e o que é efeito da violência em que vivem. Só sei que o seqüestro no ônibus, que chocou milhões de telespectadores em todo o país, foi para Sandro apenas o desfecho natural de uma trajetória sem saída.

Melhor do que eu ficar aqui dando uma de crítico de cinema, escrevendo sobre o que não entendo, é passar a palavra logo aos dois jovens que colocaram esta obra em pé após quase quatro anos de trabalho.

Conversei com Bruno e Bráulio - olha aí, bons nomes para uma dupla sertaneja... - depois de me recuperar do impacto do filme para tentar entender melhor o que havia acabado de ver.

Não posso me queixar da vida. Os dois são meus amigos e me deram belos depoimentos. Uma das felicidades de trabalhar por muito tempo nesta profissão de repórter é ficar conhecendo muita gente boa em todas as áreas, como estes dois premiados talentos do cinema brasileiro, e acabar entrevistando amigos.


A seguir, três perguntas para Bruno Barreto e Bráulio Mantovani:

“Depois de rodar o primeiro take, meus olhos estavam cheios de lágrimas”

IG: Bruno, por que você resolveu fazer este filme? Não tinha nenhuma história mais bonita e feliz pra contar?

Bruno Barreto: Quando vi o documentário “Ônibus 174”, do José Padilha, fiquei muito impactado e com muitas perguntas que não encontravam respostas. A principal era: por que a Marisa resolveu adotar logo o Sandro, menino de rua que tinha sido preso várias vezes? Muitas vezes só a ficção consegue responder perguntas que a realidade apresenta. Não sei explicar porque fiquei compelido a contar esta história. Em geral, só consigo responder a isto alguns meses depois do filme ficar pronto.

IG: Em que “Última Parada - 174” difere de outros filmes recentes que trataram da violência carioca?

Bruno: Eu acho que essa história é diferente porque, pela primeira vez desde “Pixote”, coloca esses personagens, excluídos socialmente, como sujeito e não objeto. Dessa forma, mesmo que o espectador seja de uma classe social bem distante daquela dos personagens do filme, ele vai se envolver, porque os sentimentos humanos são universais.

IG: Teve alguma cena em que você se emocionou, ficou com o coração apertado durante as filmagens?

Bruno: A cena na qual o Sandro “adota” a Marisa como mãe. Digo que ele a adota porque sabe que ela não é a mãe dele, mas ela acha que está reencontrando o filho verdadeiro depois de 17 anos. Será que o Sandro é um mau caráter porque está fingindo que é filho da Marisa, embora ele conheça o filho verdadeiro? Eu acho que não, porque o Sandro precisa muito mais de uma mãe do que o filho real. Esta é a cena mais emblemática do filme e, quando eu gritei “corta!”, depois de rodar o primeiro take, meus olhos estavam cheios de lágrimas.

“Só me sinto realizado quando o espectador sai perturbado”

IG: Bráulio, você que já foi repórter obrigado a retratar a realidade, conte um pouco como foi o processo de criação do roteiro, como a história de ficção foi sendo construída, as dificuldades que enfrentou...

Bráulio Mantovani: Para mim, a maior dificuldade foi a mesma que tenho sempre que trabalho a partir de histórias reais que aconteceram recentemente: criar a coragem necessária para alterar a história real e transformá-la em ficção. Esse processo é sempre o mais difícil para mim. Mas é o único que funciona. Não consigo ser fiel à realidade. Eu só consigo escrever inventando. Mesmo nas adaptações - como em “Cidade de Deus” - o que eu faço é me apropriar das histórias para contá-las do meu jeito. No caso das adaptações ou reescrita de roteiros de outros autores eu mudo o que quero, mas não sem antes sofrer muito, sentir-me culpado e ter a sensação de que estou desrespeitando a memória das pessoas. É traumático. Mas ficção é ficção. E a responsabilidade maior do artista ou escritor é com a forma. No caso específico de quem escreve para cinema, a responsabilidade é com a eficiência da narrativa. Transpor a vida para a ficção é algo que não sei fazer. Acho que ninguém sabe. Simplesmente, não funciona.

IG: E o que funciona para o filme dar certo, mesmo sendo uma porrada, um soco no estômago do freguês?

Bráulio: O que funciona é recriar na ficção o efeito que a história - seja real, seja adaptada de literatura - produz em mim. E para recriar esse efeito eu invento e reinvento fatos e personagens. Nenhum personagem em “Última Parada – 174” é fiel á realidade. Tanto que apenas o Sandro tem o mesmo nome do personagem real que usei como inspiração. Todos os outros nomes são inventados. Eu gosto de pensar que tudo nos meus roteiros é invenção minha. Inclusive o que aconteceu de fato, na realidade. No meu roteiro, o massacre da Candelária, o seqüestro do ônibus 174, a morte da refém e de Sandro são de minha autoria. Por isso, eu espero, esses episódios têm no filme um efeito muito parecido ao que produziram em mim quando aconteceram na realidade. Um efeito devastador, perturbador. Quando vou ao cinema, gosto de sair perturbado. Por isso, quando escrevo para cinema, só me sinto realizado quando o espectador sai perturbado.

IG: No meu caso, pelo menos, você pode se sentir realizado...E, depois de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, outros socos no estômago, quando é que você vai fazer o roteiro de uma história de amor com final feliz?

Bráulio: Tenho planos de escrever umas comédias malucas...Aguarde no próximo ano!

por Ricardo Kotscho

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Linha de Passe




São Paulo. 19 milhões de habitantes. 200 quilômetros diários de engarrafamento. 300 mil motoboys. No coração de uma das maiores metrópoles do mundo, quatro irmãos tentam reinventar suas vidas. Reginaldo, o mais novo, procura obstinadamente seu pai, que nunca conheceu. Dario, prestes a completar 18 anos, sonha com uma carreira como jogador de futebol profissional. Dinho, frentista em um posto de gasolina, busca na religião o refúgio para um passado obscuro. Dênis, o irmão mais velho, já é pai de um filho e ganha a vida como motoboy. No centro desta família está Cleusa, 42 anos, grávida do quinto filho. Ela trabalha duro como empregada doméstica enquanto luta para manter os filhos na linha. Para sobreviver à brutalidade de uma cidade onde as oportunidades se afunilam, eles só podem contar um com o outro.



Entrevista com os diretores

Como surgiu o projeto de Linha de passe?

WALTER SALLES: O projeto surgiu em 2002, pouco antes das filmagens de Diários de motocicleta. Ele nasce em função de vários desejos: voltar a trabalhar com Daniela Thomas, voltar a colaborar com Vinícius Oliveira depois de Central do Brasil, voltar a falar do país dez anos depois de Terra estrangeira. Nesse meio tempo, a descoberta dos documentários Futebol, que aborda as “peneiras” nos pequenos clubes, e o Santa Cruz, sobre a questão das igrejas evangélicas no Brasil, foi fundamental. Nesses documentários, dirigidos por meu irmão (João Moreira Salles), esses universos foram tratados de maneira surpreendente, muito diferente dos retratos feitos pela televisão ou mesmo no cinema. Desde a largada, a gente também tinha a idéia de falar de uma família sem pai, um pouco como já havíamos tratado em Terra estrangeira. Talvez por causa das muitas dificuldades que enfrentamos no desenvolvimento do projeto, o filme se converteu num esforço eminentemente coletivo. No início feito a quatro mãos, depois a seis com a entrada fundamental de George Moura (coroteirista), e logo dez, doze... O roteiro foi repensado várias vezes, fizemos frente a diversos obstáculos – um pouco como aqueles que afetam os personagens do filme –, que a gente teve a obrigação e o desejo de sobrepujar.

DANIELA THOMAS: Sempre que o Waltinho me chama para um projeto fico muito feliz, em primeiro lugar porque o cinema é uma paixão, e, em segundo, porque o tipo de cinema que mobiliza o Waltinho é aquele que nos dá a oportunidade de conhecer lugares e pessoas que, de outra forma, não teríamos como conhecer. Trabalhando assim, o cinema passa a ser um exercício de autodescoberta, uma forma de se melhorar, de tentar entender porque se está em determinada situação, que país é esse, quem somos nós. E, sobretudo, tentar olhar para o outro.


Por que o título, Linha de passe?

DANIELA: A idéia da “linha de passe” é o cerne desse projeto, isto é, a idéia de você ter a quem olhar do seu lado, ter um irmão, ter a possibilidade de olhar para o lado e ter o apoio do outro. “Linha de passe” é essa bola que não pode cair. O título foi pensado logo no começo e está na origem do filme e na forma com que ele foi realizado.


Como foi escolhido o elenco?

DANIELA: A preocupação central da gente foi transmitir algo para além da imagem e da fala. O talento dos atores escolhidos é inequívoco, mas houve uma preocupação de que se visse aquela família e acreditasse: eles são irmãos. O Vinícius, como era nosso primeiro ator, foi o eixo para a escolha dos irmãos e da mãe. Foram vários testes feitos pela equipe da Fátima Toledo.

WALTER: Quando você pensa um filme, é essencial traçar uma lógica própria àquela narrativa. Já que essa era uma história que falava de desejo de pertencimento, de reinvenção, nos pareceu importante que isso também acontecesse com os atores que estavam entrando nessa aventura conosco. Ou seja, tinham que ser rostos novos, atores que tivessem a disponibilidade de ficar meses mergulhados num processo de pesquisa de personagem, para o qual a participação de Fátima Toledo foi fundamental. Nas filmagens, tentamos estar em perfeita osmose com o elenco e dar liberdade, por exemplo, para que um ator evoluísse como quisesse dentro do quadro. Não havia duas tomadas iguais. Como vocês chegaram a Cidade Líder, onde está situada a casa da família?

DANIELA: Assim que a gente definiu a espinha dorsal da história, eu e o George Moura fomos localizar o roteiro em São Paulo, tentar dimensionar o filme numa cidade desse tamanho. E a primeira coisa que a gente fez foi uma pesquisa de locação para o roteiro. Naturalmente, apesar de morar em São Paulo e achar que a conhecia na palma da mão, encontrei uma cidade que desconhecia. Até que achamos Cidade Líder e nos apaixonamos por esse lugar. Lá a gente encontrou a casa, no limite do asfalto. Logo depois da casa, começa uma quebrada onde você tem uma visão extensa da cidade de São Paulo – ou melhor, de um dos cantos da cidade de São Paulo. Encontramos vários lugares nessa primeira investida que ficaram no filme até o fim. Os campos de futebol, a casa da Bianca (mãe do filho de Dênis), a casa dos meninos, e algumas das principais avendidas que a gente filmou. Ali começou a se delinear o personagem da cidade de São Paulo – que é um sexto personagem dessa trama.


Como foi filmar no trânsito de São Paulo?

WALTER: A idéia do movimento está na gênese do filme. A própria idéia da linha de passe pressupõe que a bola viaja de um personagem para o outro. Não havia como facilitar nessa parte: a gente sabia que ia filmar ônibus e motocicleta no meio do trânsito da cidade. Em boa parte das cenas, os carros que estão passando em quadro realmente estavam passando ali. Isso é o resultado da conjugação do talento do Mauro Pinheiro, nosso jovem diretor de fotografia, e da cabeça de José Gomes, um maquinista que sempre tem as soluções mais simples para os problemas mais complexos e que transformou duas motocicletas em verdadeiros dollys (carrinhos para “carregar” a câmera).


Qual a maior dificuldade de se filmar um jogo de futebol?

DANIELA: As filmagens do jogo do Corinthians que abrem o filme ocorreram no Morumbi, em um dia de jogo mesmo. E foi um jogo dramático, porque o Corinthias estava para ser rebaixado. A torcida estava muito estressada, e tinha comparecido em peso. O estádio estava lotado. Tivemos o privilégio de observar um jogo em que as emoções estavam especialmente exacerbadas. O que também foi apavorante, principalmente pra quem estava no meio das arquibancadas, como eu. A gente fez uma cobertura muito extensa do jogo. Havia várias câmeras em campo e dentro das duas torcidas. Filmar essa partida foi uma das coisas mais incríveis que já vivi. Futebol não é brincadeira, e só ali senti o que é de verdade.

WALTER: As torcidas ajudaram, e muito. A gente pediu autorização, evidentemente, para estar ali. O Raí, que é um cara super inteligente e generoso, ajudou a abrir as portas no São Paulo. No jogo do Morumbi, tudo é filmado no instante, claro. Filmar no calor do momento remete novamente ao documentário. Gosto muito do cinema feito assim, porque ele só é possível daquela maneira, ele faz com que você vá junto com o rio. Como no jogo do Morumbi: noventa minutos depois o filme terá mudado e você não sabe para que lado. Não há roteiro que permita prever aquilo. E a tensão inerente ao início do filme é a tensão daquele jogo.



fonte:
http://www.paramountpictures.com.br/linhadepasse/